19 março 2021

SUL – Breves instantes à Socapa do Mundo

 SUL – Breves instantes à Socapa do Mundo

  


Dia 10Mar21 – Etapa Montijo – Coruche -  Couço (Canal Sorraia, em tenda) – 126km

Precisava disto. Todas as limitações impostas pelo governo criaram um fosso com a natureza. O Governo não permite a liberdade de movimentos, excepto em casos excepcionais. Para mim, estava a ser crucial fazer uma escapadela em modo travessia.

Fui à socapa do mundo.



Antes das 8h da manhã estava a sair do comboio no Cais do Sodré. Do outro lado das portas de vidro, avisto pessoas a encurtar o passo, a pararem e  a serem abordadas por vários polícias. Por um momento estou sozinho. Atrás de mim o fim da linha. Os comboios parados. Todos os passageiros já tinham seguido aos seus destinos. Num instante pensei que tinha mesmo que apanhar o metro e chegar a outra estação. Já no piso inferior encontro as escadas de saída. Sigo pelas íngremes escadas rolantes, a cabeça bem levantada a verificar se não existem surpresas à superfície. Quatro carros da polícia estão estacionados. Todos os profissionais estão ocupados no interior da estação e por isso dei continuidade aos meus planos de apanhar o barco para o Montijo. Era desta cidade à beira rio que iria começar a odisseia de 3 dias.

Os caminhos brancos ladeados por cercas dominam para lá de Alcochete. Há uma parte do troço ligeiramente desagradável. São vários quilómetros a partilhar a estrada com viaturas pesadas que se deslocam para Porto Alto. Sem bermas, sem escapatória, sente-se a deslocação do ar e a vibração dos pneus sobre o alcatrão.

Na zona das lezírias desloco-me rapidamente. No topo das valas de abastecimento de água, a bicicleta progride sem grande dificuldade. Nas partes mais baixas a água acumula-se, os poços surgem com regularidade e a lama seca começa a ser traiçoeira.



É em Coruche, já perto das 15h, que compro algo no supermercado para almoçar. Autonomia em tempo de pandemia não combina e como são poucas as fontes, torna-se necessário ir bem abastecido. Na ciclovia desta cidade ribatejana avanço bem colado ao rio Sorraia. As marcações do percurso de Erra da FPC surgem em placas metálicas cravadas no solo. A simbologia indica tratar-se de um percurso fácil.



Garças, lontras, o chilrear de pássaros abundam neste corredor verde coberto de vida. As horas de luz nesta época do ano não permitem grandes aventuras para lá das 19h da tarde.Com esta, digamos, limitação, e de não ter a certeza se chego a Mora de dia, é no Couço que procuro um supermercado. Podia fazer tudo com a luz do frontal, no entanto, em Mora nada estaria aberto para me vender algo e em verdade, o meu espírito não é absorver quilómetros. Quero olhar a luz na paisagem, ver cada cor a distinguir-se no verde dominante.

Abrando o ritmo, deixo que um habitante local montado na sua bicicleta se aproxime de mim.

- Há por aqui algum supermercado?- questiono.

- É desfasado daqui, mas há a loja da Teresa, responde o homem do Couço.

Foi apenas necessário voltar atrás algumas ruas, evitar a GNR e subir a estrada de tout-venant para olhar de frente para o pavilhão onde se lê supermercado numas letras gigantes. Tenho mais 45 min de luz no máximo. Abasteço, o pão de kilo alentejano sobre o saco do alforge parece a bossa de um camelo. Alguns momentos antes, no acto de pagar junto da caixa registadora, questionei. É o único pão que tem?

- É, diz a Teresa.

- É para o jantar, não tenho espaço para o levar.

- Mas olhe que está quentinho.

-Pode ser. Como metade ao jantar e o resto de manhã.

Afastei-me e ao longo do canal de água fui procurando um pequeno espaço para estacar a tenda.


 Dia 11Mar21 – Etapa Couço (Canal Sorraia, em tenda) – Cromeleque Almendres 99kms

Foi intenso o frio durante a noite. A parte exterior da tenda estava tal e qual como se tivesse chovido. O céu carregado não mostrava qualquer sinal que fosse melhorar ao longo do dia. Depois de iniciar o movimento, alguns metros adiante, a vala termina junto a um muro de betão. A água cai da represa com violência. Tive que dar meia volta, apanhar um bocado de estrada nacional, passar na ponte para chegar a Mora já do outro lado do rio. O montado é agora parte integral deste percurso. As cancelas começam também a surgir. Atravesso o monte da Fraga rodeado de árvores que no próximo ano já devem dar fruto. Avisto Mora a uma distância curta, cruzo a ribeira para chegar a mais uma vila alentejana onde não se vê vivalma.


Mesmo de portas fechadas, o fluviário continua a ser um local onde vale sempre a pena regressar. Os caminhos de terra batida apresentam alguns declives mas sem grandes acumulados de subida. Desvio da estrada, salto a cerca e chego à antiga linha de caminho de ferro de Pavia. Está tudo alagado, a superfície além da água está em péssimo estado. Sou forçado a procurar um ponto mais alto para melhor conseguir pedalar. Rolo sobre ervas, flores, torrões, esterco de vaca. Por enquanto consigo manter fluido o movimento. Volto a saltar cercas e pular valas para ver que o único caminho disponível num troço já afastado de Pavia está ocupado com uma manada de vacas. A campainha da bike afasta pessoas mas estes enormes bifes da vazia precisam de um outro estímulo. Uma vaca, mais teimosa, fica de olho em mim. Eu fico de olho nela e nisto passamos alguns minutos. Ela cede, talvez tenha percebido que o meu único sentido fosse aquele.



Altaneiro, o Castelo de Arraiolos é uma referência no horizonte e o meu estímulo para suportar o pedaço de caminho que me leva até Vale Paio. Nesta antiga estação existem locais para deixar a bicicleta e também bancos para descansar. Algumas barreiras de metal impedem que os transeuntes incautos façam o trajecto para o lado de onde estou a vir neste momento. A saturação dos terrenos continua, no entanto, como todo o restante troço está limpo de vegetação, é muito fácil ganhar velocidade. Não subo a Arraiolos. Tenho alimentos para, sentado numa pedra à beira do caminho, tomar uma refeição.



Daqui em diante é-me familiar a ecopista. Fazia-a muita vez quando morava em Évora. As rectas parecem não terminar, à medida que os quilómetros diminuem para a cidade Património da humanidade, a ecopista ganha alcatrão e mais adeptos de caminhada. Subo para o templo de Diana pela rua de sentido proibido. A outra via passava mesmo ao lado da PSP e como era a subir e eu ia mais devagar e carregado que o habitual, a polícia via-me.

Quem viu Évora durante tantos anos sempre cheia de vida e de turistas, dar de caras agora com ruas desertas, é surreal. Debaixo das arcadas era comum observar os aglomerados de pessoas a conversarem e neste momento, todo o espaço permanece por ocupar.

Preciso abastecer antes que a noite chegue e também porque tenho que acampar em mais um local isolado. Vou para a horta das Figueiras onde existem vários supermercados. Abrando até chegar à porta do Pingo Doce e ao ver o policia à entrada, dou mais umas pedaladas para chegar até ao Lidl. O sinal está vermelho, significa que existe fila para entrar e que no interior está gente a mais. Volto para trás, o polícia não deve dizer nada. Compro, como, carrego e sigo para o Cromeleque dos Almendres. Se o local era sagrado para os nossos antepassados terem arrastado tantas pedras para esta colina, eu precisava escarrapachar a minha tenda perto para sentir a mesma experiência neste local místico.

Dia 12Mar21 – Etapa Cromeleque Almendres – Montijo 110 kms



Como vem sendo hábito, acordo algumas vezes durante a noite. O saco que uso como almofada não está a resultar e acordo por vezes com dores de pescoço. Estou bem enroscadinho dentro do saco-cama, e nem a boca fica destapada. O meu bafo serve também para manter o interior bem quente. De repente, espreito pela abertura e vejo uma enorme claridade. Pensei imediatamente, será que o telemóvel por estar a carregar com o powerbank não despertou às 07h? Levantei-me, lá fora, uma neblina cobria todo o monte. Uma manta de humidade abraçava toda a envolvente. Eu estava lento de movimentos, esta fase da  pandemia parece que estava a paralisar-me as ações, deixando-me sem saber o que fazer em primeiro lugar. Opto então por tirar a primeira camada da tenda para que seque a humidade que acumulou em excesso com o orvalho da noite. Não eram 08h00 e já oiço o tractor com atrelado a movimentar-se. O som vem na minha direcção até que vejo o tractor chegar junto da madeira cortada que vi ontem. Aquilo que no dia anterior eu pensava que podia acontecer, aconteceu. Minutos depois, mais trabalhadores para recolherem a lenha cortada. Eu sei que estou oculto pela vegetação, no entanto, tinha a noção que com as cores claras do meu equipamento, era fácil realçar-me no verde que me rodeava. Não tive qualquer problema. Fiz a minha vida normal, continuei a arrumar os tachos, a tomar o pequeno-almoço e a preparar a bicicleta para arrancar. Quando saí, a equipa já tinha ido embora também.

O terreno torna-se mais acidentado com pedras e sulcos profundos nos caminhos. Os portões e as ribeiras carregadas de água obrigam a tirar os sapatos. Admiro cada árvore, cada curva deste singular trajecto até chegar a S. Sebastião da Giesteira onde abasteci de água num minimercado e em troca, comprei uma garrafa de leite achocolatado Ucal.

  Começa a surgir sinalização da pista do Monfurado. Numa curta fracção de tempo chego a Castelos, entro e rolo na ecopista a mais de 30km/h até à Torre da Gadanha. Esta estação de comboios está em pleno funcionamento e foi preciso passar sobre as linhas da ferrovia para continuar a minha viagem.

A paisagem muda. Os caminhos brancos de tout-venant estendem-se por largos quilómetros, ocasionalmente, um troço mais mal conservado ou muito utilizado pelos tractores, apresenta sulcos profundos e alguma lama. Felizmente está seco. Estou para lá de Cabrela quando recebo a chamada do Silvano Lourenço, um amigo do Portugal Bikepacking, que decidiu juntar-se a mim. Ele não podia fazer os 3 dias comigo e por isso decidiu que na 6f, após o turno da noite, iria em sentido contrário ao meu encontro. Estávamos desfasados por vários quilómetros ainda. Ficou combinado que cada um seguiria ao seu ritmo e que iríamos dando informações da nossa posição passado algumas horas.

Fiz com que os pedais girassem a menor velocidade, fui tirando fotos de pontos de referência, e sobre o viaduto da A2, parei para fazer tempo e comer algo. Após publicar no FB para que o Silvano viesse depressa  para comer um ovo cozido, eis que debaixo da sombra do viaduto, surge um ciclista.  O homem vinha estafado, tinha vindo bem depressa tentando sempre ganhar espaço para conseguir estar comigo. Só nos conhecíamos da rede social, mas nunca houve momentos de silêncio ou constrangimento nas nossas conversas. Os assuntos fluíam como se nos conhecêssemos desde sempre. As bicicletas iam embaladas nos caminhos de pó branco. São Terras de Pó, diz o vinho da casa Ermelinda. Num dia de muito calor ou vento estas rectas intermináveis podem quebrar muitos ciclistas. O Silvano, preocupado, dizia que eram só 8km de recta e que após isso estaríamos a beber uma fresquinha no Pinhal Novo. Seguíamos paralelos ao caminho-de-ferro com as nossas fiéis companheiras a rolarem livremente. Só o cansaço e a posição estática estavam a provocar algum desconforto. A velocidade, não baixava.



As minis para o Silvano são de 33cl, não consegui ir à segunda rodada. Faltava toda a ciclovia até ao Montijo, seria arriscado levar tanto álcool no sangue sabendo que neste caminho iriam existir muitas pessoas a passear e a andar de bicicleta.

A estação do Montijo foi o ponto de separação dos nossos destinos finais. O Silvano voltava para casa, eu seguia para o terminal fluvial para apanhar o barco até ao Cais do Sodré.

Tanto polícia novamente em Lisboa! É a repetição de 4f quando estavam a controlar quem tinha autorização para estar neste concelho? Avancei pouco a pouco até à bilheteira. Todos os elementos policiais estavam concentrados junto ao Pingo Doce, devia ter havido algum incidente. Passa um polícia, depois outro cruza-se comigo, nada se passa, o problema deles é outro. Segundo o homem da CP, foi mais um assalto naquele supermercado. É normal.

Terminei assim uma pequena viagem de bicicleta de 3 dias pelo sul de Portugal. Numa altura em que o Covid se vem arrastando há mais de um ano, e uma das formas encontradas para controlar esta pandemia tem sido os confinamentos forçados de 2 meses, ter tido a oportunidade de conectar-me com a natureza, sentado de forma livre em cima de uma bicicleta, permitiu-me um reset ao sistema que há muito sentia em sobrecarga

Vídeo Integral com passagem pela Ecopista de Pavia a Évora





20 janeiro 2021

TransNevada BikePacking 20



Não faz sentido ir mais longe…

 Até que uma voz, tão má como a consciência, soou mudanças intermináveis

Num sussurro eterno, dia e noite, repetiu – então:

“Existe algo escondido. Vai e encontra-o. Vai e olha atrás das montanhas.

Algo perdido atrás das montanhas. Perdido e à tua espera. Vai!”

 

Kipling “The Explorer”

 

Dia 11 Set – Etapa 1 Dílar- GuejarSierra -  Camping CortijoBalderas (60kms, 2020mts)






Vou começar pelo fim. Pelo choque quando vi os portões do camping fechados. Olho pelas grades e tudo o que vejo são bostas de vaca e a azul, o símbolo de uma torneira. O que eu realmente preciso é de água para conseguir sair deste ponto. Talvez hajaa caminho da próxima civilização em Tócon a 20kms, cerca de 2h30 de distância. Energia para continuar? Tinha que a encontrar, no entanto, sem água, nem cozinho nem me hidrato.Salto a vedação, abro a torneira e nada. Não dá para evitar tanta bosta de vaca espanhola espalhada pelo pátio da antiga esplanada. Está por todo o lado. Avanço atento a todos os detalhes. No buraco de um bloco de cimento vejo a ponta de um tubo. É mais um. Do lado oposto, uma torneira. Encontrei o que procurava.Faço uma vistoria rápida ao que está dentro de portas e percebo que os beliches com colchões têm o poder de me convidar para ficar.




Como cheguei até aqui? A pedalar, devagar, porque as subidas são íngremes. Depois da viagem desgastante desde Lisboa no dia anterior, resolvi dormir num hotel em Otura a cerca de 6kms de Dílar, local onde começa a aventura.Não foi o hotel mais bonito que escolhi uma vez que nesta vila existe um outro alojamento com vista sobre as montanhas. A vantagem do primeiro foi estar situado junto a uma via rápida e ter um parque de estacionamento bastante espaçoso. Desta forma, o carro pode ficar vários dias estacionado sem qualquer problema (espero eu).



Logo após a povoação começa o calvário. A percentagem de declive das subidas em terra batida não permite uma pedalada constante. Um pó branco vai cobrindo todo o corpo, a bicicleta e o vidro do gps. Os cenários vão mudando, há muito arvoredo e em determinado momento, os caminhos, já acima dos 1400 metros de altitude, passam a ser estradas de montanha. São largos, menos acentuados e normalmente começa-se a ver outras bicicletas, mesmo que venham em sentido contrário.Já rolo no Parque Natural há vários dias. Junto a uma estrada alcatroada páro para abastecer numa área com vários restaurantes e infraestruturas de apoio às atividades de Inverno. Ao observar uma mancha branca de casas ao fundo do vale, fiquei contente por perceber que era GüejarSierra e que até lá seria sempre a descer.Colado ao rio Maitena, esta aldeia situada a mais de 1000 metros de altitude, mantém o seu ar serrano. Na bifurcação do caminhoque levava para a povoação, optei por seguir para o camping municipal Balderasevitando assim que no dia seguinte repetisse o trajeto até este ponto (ainda eram 6 km a subir). A placa indicava o camping a 5kms. Ao longo da estrada, postes de madeira com uma tenda esculpida indicavam a distância que faltava. Até aquele momento, só havia um problema. Era sempre a subir. Outra vez. Cheguei ao parque, não paguei, e não tive qualquer problema.

Dia 12 Set – Etapa 2 Camping CortijoBalderas – Cogollos de Guadiz- Marquês de Marquesado – La Calahorra (73kms1063mts)

A estrada mantém-se nos 10% de inclinação no mínimo. No topo da montanha começo a pedalar para oeste. Os cenários mudam, o verde surge com frequência e dá gosto entrar pelos bosques junto a Tócon. Há um café, é psicológico, mas sabe bem comer algo diferente pois já percebi que uma simples “tostada com presunto” pode ser raro encontrar por aqui. Vou precavido com algumas massas que me permitem situações de emergência ou dificuldade em encontrar algo civilizado pela serra.




Os caminhos de pó branco encandeiam quando o sol está alto. Volta a agarrar-se a tudo e transporto-o comigo bem colado à pele. Finalmente consigo pedalar de forma constante. Partilho parte da estrada com ciclistas. A sinalização de trânsito alerta os condutores que esta zona, pela sua beleza, é frequentada por utilizadores de bicicleta.

O cheiro de uma “panadaria” faz com que aperte os travões, faça meia-volta e tente encontrar a porta de entrada. Estou em La Peza. Deste “pueblo”, passo Lugros e chego a Cogollos de Guadix a meio da tarde. Tinha planeado ficar acampado algures num pedaço de terra da Andaluzia. Olho o gps, a linha do caminho para o dia seguinte leva-me a um sobe e desce constante a meia encosta na Sierra Nevada. Estou aos 1300 metros de altitude, percebo que se seguir o curso do rio, chego a La Calahorra ainda hoje.Os tons barrentos do Castelo de La Calahorra vêm-se de bem longe. Deambulo pelas ruelas em busca do centro da praça onde avisto a torre da Igreja. Desta posição inicio o reconhecimento para decidir onde ficar e comer. Há a opção de alojamento e alimentação no hotel Labella, tal como estava escrito no meu planeamento. Está vento, está sol, tenho uma tenda nova, porque não devo ir acampar?




Falta 1h para abrir o supermercado. Do outro lado da rua, na esplanada do hotel estudo as próximas etapas. Serão talvez as mais isoladas acrescentando que amanhã será domingo e dificilmente encontrarei algo aberto.

Dia 13 Set – Etapa 3 La Calahorra _Wild Camping na área recreativa de Paredes, 10kms depois de Alba (69 kms 1022mts)

A etapa de hoje terminou tal como começou. A subir. Deixar a segurança da água e da comida em Aldeire tornou-se mais um desafio a vencer. O cimento rasgado por sulcos cobre todo o troço que me leva a afastar do povoado. A inclinação, combinada com o peso da bicicleta, obriga a apear imensas vezes. Preciso controlar a respiração.




A estrada nacional que leva ao Puerto de La Raguae que corta a serra pelo meio, durou pouco. Sei que daqui a 2/3 dias já estarei do outro lado, assim que contornar este gigantesco maciço rochoso. Os caminhos são agora de terra e pedra escura. São caminhos de alta montanha onde consigo pedalar de pé e manter uma cadência constante. Movo-me, na melhor das hipóteses, a 8km/h. Os 2 bidons de 750 ml estão quase no fim (trazer mais uma garrafa cheia como precaução, significa mais 1kg e mais dispêndio de energia). Vou sobre o sendeiro Sulayr que me leva, tanto sobre cumes, como por meia encosta. Tenho uma vista panorâmica privilegiada sobre a mancha verde que cobre toda a área que consigo observar.Numa dobra do terreno, junto a uma linha de água, encontro uma fonte. Abasteço e deixo-me andar pelos quase 1900 metros de altitude.Tenho uma longa jornada e uma dura etapa até ao meu destino previsto que é Abrucena. O seu casario de casas brancas, quase encavalitadas e bem encostadas à montanha, é algo que merece ser recordado.



Em Alba, uma placa a indicar área recreativa suscita a minha atenção. Faltam 10km que vão ser duros de roer. São sempre a subir. Vou com o mínimo de água, lá em cima, numa área de merendas, não deve faltar, pensei. Pensei mal. Fiquei contente ao avistar o local, mas após várias voltas de reconhecimento, não encontrei qualquer líquido. Vejo vários carros estacionados pelo recinto, as instalações sanitárias estão fechadas, o acesso às churrasqueiras vedado e várias mesas vazias à exceção da mais afastada.Montado na bicicleta, desço a ladeira e aproximo-me dos 3 indivíduos que têm a mesa farta. Pergunto se sabem onde posso encontrar água? Segundo eles, não há. Um dos homens, percebendo que eu não era espanhol, prontamente me disse que eram romenos, pegou numa garrafa de água de 1,5lt e deu-ma. Ganhei o dia.





Dia 14 Set – Etapa 4Wild Camping (WC)-Ohanes-Láujar do Andarax

-Bayarcal(WC  perto de área recreativa Universal TALAMA. Slide) (53kms , 980 mts)

Hoje de manhã parecia que nada cabia nos sacos de origem. Que falta de jeito logo ao acordar. Nem a tenda nem a colchonete pareciam caber nos locais que lhes eram destinados. Estava tudo tão mal enrolado. Quem sabe se, passar a noite com tão pouca água me tenha afetado os neurónios. Ainda por cima, a meio da noite tenho sempre sede e ataquei o bidon com água destinada para o trajeto até à povoação que distava 15kms. Felizmente subi pouco. Ohanes está bem no fundo de longas descidas onde cheguei a rolar a 60km/h.À minha frente uma cortina branca de casas tapa a encosta da serra. À entrada, de um muro de pedras cobertas de musgo, brota água da montanha. Pura, fresca e cristalina. Abastecei e num gesto de refrescar o corpo, aproveitei para me lavar também.




Deixo a vila pelo extremo oposto e mantenho-me a pedalar a pouco mais de 1000 metros de altitude. Vou ligeiramente afastado do percurso de gps que se situa numa cota bem mais acima. Vendo esta povoação percebo que, se pedalar sempre “perto das nuvens” e em isolamento total, perco imenso da criação do homem que tão bem se adaptou a estas condições inóspitas da montanha.Parei em Láujar do Andarax. Toda esta região é um chamariz turístico com grandes potencialidades gastronómicas. Para mim, basta um café ou uma cerveja num café local enquanto escrevo e carrego gadgets. Poupo-me para a passagem do Puerto de La Ragua (2000 mts) pois sei que terei que acampar bem mais alto para no outro dia chegar a Trevélez.






Perto das 15h, chego a Bayarcal. Os poucos estabelecimentos comerciais que vi estavam fechados. Até o restaurante ao lado da igreja e a padaria encerram à 2ªf.As fontes de água abundam. No centro da aldeia, ao perguntar a um transeunte onde podia comer algo, indicou-me que, voltando para trás, alguns metros mais abaixo e bem às portas da terra, eu comeria bem no restaurante Nuno.Por 10€, sacio-me com o “menu deldia”  e quem sabe já nem preciso jantar. Encho todas as garrafas disponíveis e vagarosamente vou ultrapassando as curvas da estrada sempre atento a um pequeno espaço onde possa colocar a tenda. Só vejo pedra, cardos e tojo seco sobre as ravinas que me cercam. Vou muito carregado, não pretendo avançar demasiado e por essa razão o sítio que escolho precisa de algum tempo de preparação do terreno. Dificilmente alguém virá pisar este espaço um pouco afastado do “Pueblo mais alto de Almeria”. As ovelhas e cabras não contam… Uma hora depois, passa um rebanho a trepar ladeiras e rochas.


Dia 15 Set –  Etapa 5 Bayarcal -Laroles_Maitrena-Juviles-Trevélez (73kms , 1300 mts)

As gotas de chuva batem com força no teto da tenda durante alguns períodos da noite. Ao acordar, quando arrumo a tenda na bicicleta, vejo claramente a terra seca e o formato da tenda no emaranhado de pedras e tojo que enche esta clareira. Continuo ladeira acima em direção ao Puerto de La Ragua. Alguns quilómetros abaixo do cume abandonei o alcatrão para depois cruzar toda a montanha que vejo mesmo na minha frente pisando umpiso duro com terra rochosa e negra. Foi uma tortura chegar a Juviles. Uma estrada secundária leva-me até ao “pueblo mais alto de Espanha”, Trevélez. Esta aldeia está dividida em três bairros (Alto, Médio e Baixo), com uma diferença de nível de até 200 metros, as casas mais elevadas do Bairro Alto alcançam os 1.650 metros de altitude.






Depois de passar a praça central e as dezenas de lojas de presuntos, sei que tenho que chegar ao último nível para atingir o camping. A temperatura é outra por aqui e nada tem a ver com o calor que se sente quando se rola a cerca dos 1000 metros de altitude.




Dia 16 Set – Etapa 6 Trevélez – Capileira-Pampaneira- Casa montanha (pastor) N 36 56.999 W 003 27.588 58kms 1400mts



Cansado e satisfeito é o que me apraz escrever nesta altura colado à casa de xisto abandonada no meio da Sierra Nevada. A estrada levou-me apressadamente de Trevélez à povoação da Capileira. Vinha de cima, velozmente enquanto sentia que aquela malha de casas brancas estava a chegar cada vez mais perto. As varandas das ruas estão coloridas com mantas de todos os tamanhos e cores. Há cestas e muitos outros artesanatos que a gente hábil da montanha elabora com tamanha arte.Faço do meu tempo, o tempo para beber uma cerveja e “picar” algo. Alguns quilómetros mais abaixo, outro pueblo mágico de Espanha onde cheguei num sopro. Parecia que descia num super elevador para um nível inferior. Em Pampaneira demorei-me um pouco mais. Aproveitei para almoçar e reforçar o saco de mantimentos que nesta altura tem mais comida do que quando iniciei o périplo. Após 40kms percorridos começa a pista florestal. Os restantes 18, reservam muita história para contar.




A subir, sentado no selim da bicicleta, mesmo a 5km/h, consegue-se chegar bem alto. À minha frente, um piso duro, um calor intenso pelas costas e dezenas de moscas faziam-me uma espécie de escolta até encontrar uma fonte e tirar o excesso de suor que escorria por todo o corpo.Na primeira casa florestal que passo, vejo uma casa outrora bela, escrupulosamente bem situada junto de uma densa arborização ao abandono. Em vão tento encontrar água. Levo quase 3h de subida, resta-me 0,5lt água e a esperança de a ver escorrer por entre as rochas. As paragens ao longo deste trajeto são frequentes. Numa delas, pego no telefone, vejo que tenho cobertura e dados móveis e comento que, aquela altitude a tecnologia vence a água.

Estou a seguir uma placa a indicar área recreativa que dista 6kms quando vejo um jeep a descer. Faço sinal e pergunto se existe alguma fonte neste local de lazer.



- “Queres água? – Diz o condutor.

- Sim.

Recebo em mão uma garrafa do Luso e comento que é água de Portugal.

- Então também és português? A fonte fica longe.

Bem!? Fica longe e eu não a encontrei. É curioso porque quando procurava água na casa florestal, tentava ouvir o som dela a escorrer, e por vezes, o vento a bater nas folhas quase me iludia. Aqui não. Ouvia água em bruta a desceraceleradamente numa calha de irrigação. A fonte? Nada. Meti as garrafas de molho e transportei o máximo que podia na bicicleta.

Nova casa florestal em Cañar e também aqui não tive sucesso. Ao ver alguém espreitar, pergunto. Há por aqui alguma fonte?

-Pienso que non

- É que acabei de encher as garrafas num canal de irrigação.

- Non tienes problemas. És água corriente.

Vou sobre uma grande rota e avisto uma placa a alertar que o caminho é privado, para não o seguir. E agora?! Aos 1700 metros de altitude não dá para ir dar a volta. Mantenho-me no caminho a descer. Os cenários, as cores castanhas fortes da montanha ao meu lado contrastam com tudo o que vi até agora na Sierra Nevada.Vejo bem longe 2 jeeps estacionados junto a habitações e uma casa de xisto a poucos metros de mim. Tenciono montar a tenda pois a casa tem grades nas janelas e um cadeado na porta. Com um olhar mais atento por um vidro partido, vejo imensa luz natural no interior e percebo que no tardoz da habitação só existe uma meia porta para o quintal. Assim sendo, fiz-me convidado para passar a noite em solo duro.





Dia 17 Set – Etapa 7 Casa montanha (pastor)- Nigüelas-Dílar (Otura hotel boadbil)  41kms 860mts

Todo o vale que se espraia para lá desta casa de pedra está coberto de nuvens. O céu cinzento, carregado, ameaça manter a chuva que caiu durante a noite. Sinto o ambiente mais fresco, o cheiro a terra molhada e a outras ervas que não sei identificar é intenso.





Volto ao ponto do caminho que tinha abandonado no dia anterior. O jeep branco e o outro carro mantinham-se no mesmo sítio enquanto me fui aproximando. Transponho nova corrente de ferro para passar 2 casas de montanha com vista para uma cascata, onde, por um estreito carreiro, passei bem colado a ela.A ladainha de andar a pé continuou até ao abrigo de montanha situado alguns metros acima. É enorme, tem um enquadramento paisagístico digno de um hotel 5 estrelas. Já a meia encosta, enquanto contornava a montanha, olhava para baixo e via a casa do abrigo do pastore todo o caminho que tinha feito até ali chegar.


Sem precisar, fui contanto as fontes que amiúde e de forma abundante iam surgindo. No minino contei 5 até Nigüelas. Bem alto, via toda a povoação e senti-me deslumbrado com a forma e as cores da montanha que abraçavam esta terra.Na praça central, onde tudo flui, onde 2 bicas brotavam água, bebi e comi.


É ao longo do rio Torrente que o caminho volta a entrar na montanha. Em sucessivos movimentos de zigue-zague, volto ao ataque para mais um embate duro pois esta Serra consegue manter em alta todas as expectativas até ao final. Foi sem dúvida o troço mais bonito de toda esta travessia.  Desço para Dílar onde, há 6 dias atrás deixei o carro no parque de estacionamento do hotel.

Há muito que está na hora do check-in, no entanto, é chegada a hora da descompressão. De fazer uma transição suave entre o modo como vivi durante 7 dias e hoje. Vou celebrar. Vou beber um Alhambra mesmo ao lado da via rápida.

Epílogo


Menos com menos dá mais.

Em matemática, menos com menos dá mais. Durante este périplo levantei-me ao amanhecer rodeado de natureza, quando me deitei, não me afastei da essência. Durante este período de tempo, fiz tudo aquilo que mais gostava. Pedalei e estive menos tempo a…

Dormi todas as noites sob o mesmo teto. Em todas essas noites, coloquei a tenda em sítios diferentes, todos eles à distância de várias pedaladas.

Sou feliz assim. Sei que moro num apartamento na maioria dos meus dias, mas não me sinto menos feliz por isso, apenas gosto de subir à montanha porque ela está ali, à minha frente, e preciso de chegar ao outro lado.