06 fevereiro 2014

Viver a lenda do Tour de France a pedalar


1.  A primeira semana no Tour visto de carro com a bicicleta na bagageira

Já ando nesta região de França há alguns dias e só quando observo as formas titânicas das montanhas que me rodeiam, eu percebo:
 - Estou nos Altos Alpes e vou ter mais um desafio à minha medida. Cada vez que saio de casa e vou à procura de um trilho novo, a experiência que vivo é transcendente.
 - As montanhas não têm fim. Eu sempre quis o que é meu por direito, conquistado com a bravura de um guerreiro e a humildade de um peregrino. Neste caminho, a bicicleta tem sido uma lição permanente e é sobre ela que tenho passado alguns dos melhores anos da minha vida.
Desde a Patagónia e a Islândia que a minha bicicleta tem o peso da saudade de olhar o mundo, saudade que se esvanece quando toco em outro ponto do meu planisfério pessoal.
Adoro contemplar um ponto no mapa e poder falar sobre ele, é por isso que quando avisto um determinado local do planeta, ele diz, pedala até mim.
Escolhi celebrar os 100 anos do Tour de France e pedalar em autonomia nos Altos Alpes, cruzando as lendárias subidas do Alpe d´Huez e Col Galibier.

Joaquim Agostinho, Contador, Armstrong, muitos foram os heróis que por aqui passaram, chegou a altura de escrever mais uma parte da minha história. São palavras que abraço, que vêm no dicionário, que têm vida porque lhes dou o meu suor e me ajudam a viajar nos dias em que estiver em casa. Quando o fizer sem sair do sofá é porque já pedalei tudo o que tinha para pedalar.
Milhões de televisões estão ligadas para ver a prova mais famosa e mediática do mundo, de lycra, à beira da estrada eu vejo o pelotão a passar.


·         Subida ao Monte Ventoux (1500mts em 20kms) 15Jul13


São inúmeros os ciclistas que se vêm na estrada. No alcatrão está marcado o nome dos atletas, são palavras de incentivo.
A pendente da estrada começa nos 2.5% e aos poucos vai chegando aos 10%. Desde Bedoin são 21,5 kms desafiantes (estavam mais de 35º às 15h), foi uma dádiva a água fresca que havia no café a meio do percurso que no seu termo culmina com paisagens lunares e desertas.

·         A caminho de GAP 16Jul13
No percurso para GAP pela alta montanha, apercebi-me que percorria exactamente a mesma estrada onde iria passar o Tour.
Adorei ver os campos de alfazema coloridos de roxo, no entanto, já era tarde e o cansaço do Mont Ventoux apoderou-se de mim. Passava das 21h, e por isso optei por ficar ao longo do caminho onde encontrei uma pequena casa de pedra. Foi o meu Gite de France a preço low-cost.
Foi na 16ª etapa que vi os ciclistas passarem. A caravana publicitária que os antecede é enorme. É uma festa ver a forma como os patrocinadores embelezam os carros, passam música e lançam surpresas para quem lhes acena. A meus pés caem diversos souvenirs.
Um grupo de fugitivos aproxima-se, vêm tão rápidos que só dá tempo para tirar uma foto. Mais atrás vem o pelotão a preencher 2 faixas de rodagem pintando-as de várias cores, quando passam, tudo abana.


É impressionante a excitação que sinto naquele momento, estou tão empolgado que ao ver o filme que o casal de franceses ao meu lado fizera, só ouvia a minha voz. Tiveram de oferecer-me o filme J
O rio e o vale que me leva até Gap são lindos. Deu para tomar banho antes de me dirigir ao ponto de chegada do contra-relógio de amanhã.
Estou em Chorges. As faixas de rodagem começam a amontoar-se da pesada logística que o Tour movimenta. São camiões e camiões, carros, homens. Tudo faz número e massa nesta terra de França.
Nestes eventos, as estradas são cortadas desde muito cedo e durante muito tempo, por precaução deixo o meu carro afastado da vila e estarei logo de manhã cedo a torcer pelo team equipado na minha bicicleta.

·         A etapa de contra-relógio de Chorges a Ebrun 17Jul13


Felizmente que deixei o carro no parque longe de Chorges, o contra-relógio acaba na N4 e todos os camiões de apoio das equipas estão lá parqueados durante quilómetros.
Adorei estar em vários pontos da prova de hoje, especialmente numa curva tão fechada, onde os atletas tinham obrigatoriamente de abrandar.
Segui cedo para mais perto do Alpe D´Huez, sabia que as grandes enchentes seriam nessa zona. Mais uma vez o gps envia-me pelo caminho mais curto, e por sinal, pela montanha.
Foi agradável ir na dianteira e seguir as setas do Tour, havia momentos em que as curvas eram tão apertadas e tão ingremes que só em 1ª velocidade o Peugeot subia (o gps “encontra” cada atalho…)
Desviei para Bourg d´Oissans e amanhã sigo de bike para ver a próxima etapa. Quase não há um buraco para encostar quanto mais para colocar a tenda.
Nestes dias, praticamente tudo é permitido em nome do desporto e da festa e o resultado é: outro acampamento num sítio improvável.


Também improvável mas realidade, foi ter posto a carregar a GoPro, telemóvel, pilhas e maq. fotográfica num quadro elétrico em frente ao café Paris bem no centro da cidade.
Procuro abrigo porque chove entretanto, neste compasso de espera, a melhor maneira de dar corda ao tempo é passar os olhos por um livro que sempre me acompanha em viagem.

·         Numa das muitas subidas do Alpe d´Huez 18Jul13




Como imaginar a 100ª edição sem a subida a este topo lendário? Este ano o pelotão passará aqui 2 vezes, são momentos que se guardam para sempre.
A multidão, em número parecem formigas; em cores, representam todo o espectro. Sobem a pé e de bicicleta para, antes das 12h00, estarem numa curva deste mítico local e acima de tudo, para sentirem no corpo o esforço que é necessário a um ciclista para vencer uma montanha.
Parece um paradoxo, mas mesmo parado, não dá para estar quieto. Quem consegue resistir a tanta diversidade humana e material?!




1.  A segunda semana nos Altos Alpes com a bicicleta e o atrelado.

19Jul13 – Bourg d´Oisans - Lat. e Long. (Secret) altitude 2500 mts


Gosto de matemática simples, especialmente quando o oxigénio já não chega com frequência a esta zona do cérebro (as curvas da estrada subtraem-se e á altitude soma-se mais uns metros).
O resultado são 21 curvas, eu estou do avesso, sinto os pulmões e o coração do lado de fora com tantas voltas para atingir o topo do Alpe d´Huez. Num instante saio desta estância de esqui para o “outro lado”. Mais uma coletânea de curvas, não deu para as contar, a velocidade faz voar qualquer número da minha cabeça.
Hoje não vai dar para chegar a Chalezet, a chuva quer fazer-me companhia mas eu sei que pelo desnível do terreno que tenho pela frente, ela vai ser muito incómoda e de certeza que me vai tocar nos ossos.


Não quero, só necessito do que faz bem ao coração. Estar num estábulo rodeado de animais, moscas e cheiros a condizer, não é propriamente a melhor receita. Escrever…Muda tudo.
Virei a página, o dia é o mesmo, só passaram algumas horas e a chuva parou. Decidi continuar.
A linha sinuosa do track que o ecrã do gps mostra para os próximos quilómetros até Chazelet não era animadora.
Passei horas no caminho, em determinada altura, dei comigo desviado da GR-54. Tinha entrado em terreno privado, estava aos 2500 mts de altitude, 2 homens gritavam “prive, prive” e mandavam-me para trás.
Com uma mão no ar (outra no guiador, pés e a cabeça a girarem), fui avançando dizendo “un moment”, “un moment…”


A conversa fluía mas não era com o meu francês de há 25 anos atrás da escola. Os aperitivos que a caravana publicitária (que precede o Tour), lançou naquelas etapas onde estive, foram quanto baste para entrar no refúgio e começar a beber cerveja.
Quase bati o meu record em consumo de álcool. Felizmente tinha convite para passar ali a noite, só tinha de ir à “fiesta” com eles. De viatura, encosta abaixo durante largos quilómetros e deparei-me com outro refúgio mesmo em frente a um glaciar. Super!!!
O Collin e o Berger curtiam a música intercalando com Pastis de Marseile, marijuana e tiro ao alvo. Um deles bem que tentava acender o forno a lenha com acendalhas, cavacos, gasolina mas sempre sem sucesso.
Era uma vez um jantar, e era hora de regressar ao abrigo. Sei que eles estão habituados a este tipo de divertimento, por isso, já no Toyota pensava “ os homens são mais perigosos que os Alpes”

20Jul13 – Lat. e Long. (Secret) – algures em Le Vigneaux


Às 07h00 da manhã já tinha enfrentado duras descidas por single-tracks. Eram autênticos caminhos de cabra, só acessíveis a pé ou de bicicleta.
Julgo que naquele momento a beleza e a adrenalina superaram o perigo e a sensação de estar, mais uma vez, completamente sozinho nos Alpes.
No col du Lautaret (2058 mts), sentado numa esplanada, decido que não irei ao col du Galibier. A estrada de alcatrão não é o meu território, subo mais alto e vou mais longe em cada que caminho de terra que faço.



Grande parte da tarde limitei-me a seguir o curso do rio com água glaciar onde tentei tomar banho mas os joelhos tremiam e tive de parar esta experiência radical.
Inevitavelmente, as pequenas vilas nos Alpes estão situadas nos cumes como ninhos de águia. Aqui pode abastecer-se com água pura da montanha … É pena que o ar puro não alimente pois não existe mesmo mais nada.
No início desta aventura, ainda durante a etapa do Tour, disse a um italiano que levava comida para 4 dias.
Espantado, balbuciou  - “they have food in France, did you know it?”
Ahhhh!!! Se ele 1dia pegasse numa bike de montanha e viesse comigo, passava muita fome – pensei.
Continuo a rolar perto dos 2000 mts e mesmo assim surgem quilómetros de single-tracks, autênticos parapeitos na montanha. Ali não há rails de proteção, basta uma desatenção e a ravina convida-nos a descer.


São vários os raios que se unem numa roda. Parti um, “pas de probleme”, a roda está empenada, só preciso de andar mais devagar para chegar a mais um pedaço de terra boa para montar a tenda, oficina e cozinha.
Foram 12h a pedalar. É verdade que tenho suado muito e nesses momentos, alguns são doloroso e não os repetiria, no entanto, tenho passado bons anos da minha vida em cima de uma bicicleta.


21Jul13 –Le Vigneaux- Châtearaux Les Alpes



As rotas de btt estão muito bem marcadas no Parque Nacional Les Écrin, existem muitos percursos e todos parecem exigentes.
O meu périplo cruza grande parte deles e é normal subir até vários topos (col) no mesmo dia. Nessas alturas, o suor está para o meu corpo como o orvalho para a tenda. Ele desprende-se da pele e cai em gotas deixando um vasto rasto pelo caminho.
Deixei o corpo, deixei a bicicleta, deixei esta montanha e subi mais além. Estava cheio, preenchido pela plenitude de descobrir que o tamanho do que sou está intimamente relacionado com o tamanho do que quero.

Preciso deixar os ninhos e ir até onde habitam os homens para me abastecer em Argentiere La Besse. O único problema é que cada vez que o faço, tenho de descer 1000 mts em altitude.



Um supermercado aberto passou de necessidade a mimo. Para trás foram ficando locais que se resumem a 3 ou 4 chalets de madeira, até que, comparando a curva do track no gps com o vale que tinha á minha frente, cedo percebi que, existindo um caminho do outro lado do rio, não iria ser fácil lá chegar.
A escassos quilómetros de distância de Châteaux des Alpes, sobre um escarpado, conseguia ver a ponte de madeira. Nem com um passo de gigante lá chegava e nem o Obélix conseguia mover aquelas pedras que a natureza fez rolar encosta abaixo e que aniquilavam a passagem na GR e a minha continuação até ao destino. A única alternativa seria descer, continuar a descer e contornar toda a montanha pela N94.
Os Alpes são tão grandes que mais uma vez arranjo facilmente espaço para montar tenda e passar a 3ª noite a ouvir os insectos e a água a correr.




22Jul13 Châtearaux Les Alpes  - Chorges

Até agora os dias têm sido passados em quase isolamento. Excetuando as paisagens, poucos são os lugares onde podemos gozar aquilo a que vamos sendo habituados na vida moderna.
Ebrun é assim. Uma vila típica dos Alpes com um centro histórico maravilhoso (a partida do contra-relógio do Tour foi aqui), onde se pode ver os mercados de rua e a vida a passar estando simplesmente sentado numa esplanada.
Há dias assim, mais tranquilos. O que tenho pela frente, continua lá, tenho a certeza de vir a ter longos momentos de vento pela cara.
É bom ir escrevendo por partes, se fosse no final da etapa não se iria notar o contraste e o quanto tudo pode ser completamente diferente de um momento para o outro quando viajamos em 2 rodas.



Foi horrível sair de Ebrun. Pedra sobe pedra, caminhos íngremes para serem feitos a pé seja qual for o sentido e muitas cascatas a cada curva do caminho.
Precisava relaxar, saí do track e desci aos 1500 mts para ir ao lago Saint Apollinaire, uma atração turística inserida num cenário único de montanha. Enquanto nadava,olhei para a mancha verde de árvores bem acima de mim e compreendi que havia ali uma dobra do terreno imprópria para carregar uma bicicleta com atrelado.
Nos Alpes, um atalho pode significar ter que fazer escalada, definitivamente, a única alternativa foi seguir a N94. Nesta estrada mantinha-se gravado o nome dos atletas do Tour quando aqui percorreram a 17ª etapa de contra-relógio.
Os sons da trovoada já ecoavam desde a hora em que estivera no lago, o mau tempo vinha aí e só agora me sentia satisfeito porque,sem querer, evitei os trilhos de montanha e só tinha uma preocupação, montar tenda rapidamente.
Da tranquilidade de uma manhã de sol numa esplanada a escrever mails e a postar no facebook, à realidade de uma chuva forte em escassos minutos, é simplesmente normal em cenários assim.

23Jul13 Chorges - Bourg d´Oisans

Com chuva ou não, as noites dentro da tenda demoram sempre muito a passar.

A etapa de hoje é brindada com sol e praticamente todo o percurso vai ser finalizado por estradas secundárias (alguns tramos são coincidentes com os do Tour). Este “pormenor”, permitir-me-á, se as pernas tiverem a força da intenção, percorre ros 100 kms que me separam de Bourg d´Oisans, o meu ponto inicial de há 5 dias atrás.
Enquanto estava a acompanhar o Tour a semana passada e aqui passei de carro, é óbvio que me assustei ao ver o ponteiro da temperatura a subir, a estrada ser diminuta e a mudança engrenada ser quase sempre a 1ª.
Conhecia bem o que se escondia entre as folhagens.Para enfrentar este Golias só tinha mesmo um grande coração para bombear a bicicleta.

Epílogo


Gostar de andar de bicicleta é das melhores coisas que tenho. Eleva a minha alma e afecta positivamente tudo o que gira em meu redor.
Ser contagiado pela paixão e quase ser tocado pelo pelotão no Tour de France, era – mais – um dos meus sonhos que realizei.
Os sonhos não devem ficar na gaveta e muito menos presos à carteira. Um dia percebi que, vivendo assim, os pesadelos andavam de mãos dadas comigo.
Encontro mais facilmente a felicidade nos pedais do que dentro dos bolsos.
É por isso que pedalo e escrevo para não esquecer e para ir buscar o meu chão cada vez que encosto a bicicleta. É neste momento, nestas palavras e neste local que sou como pedalo:

Livre, autêntico e intenso. Tão natural como as paisagens que surgem diante do que consigo alcançar.
Como alguém disse “ A bicicleta é uma lição permanente de humildade.”