15 novembro 2015

Ruta Don Quijote 15



 Um lugar para a(ventura) em Terra de Gigantes


En un lugar de La Mancha… começou assim Cervantes o primeiro romance da história da literatura.

Cada um é artificie da sua própria ventura, escreveu ele. Por todo o mundo existem muitos desafios que alguém organiza e nos mostra o caminho a seguir. Para mim, o “sentimento de segurança” que oferecem assemelha-se a sentir-me como um hamster na gaiola. Eu decido onde quero ir: esquerda ou direita, sigo em frente ou fico parado e siderado a contemplar o horizonte?
Todos os lugares por onde passar farão parte da minha história, a maioria deles foram escolhidos pela enorme curiosidade que em mim despertaram  quando sobre eles li ou vi.Talvez a absorção de tanta literatura de viagem, conhecer outras paragens e viver noutro ritmo me tenha embriagado ao ponto de sentir sede cada vez que a minha imaginação passa do trote ao cavalgar.
La Mancha é grande e existe, pode estar longe do mar e da montanha, mas é sobre esta terra e este céu que anseio seguir as pisadas de D.Quixote substituindo o Rocinante por uma bicicleta de montanha.Não me quero preocupar com o tempo investido nem com a quantidade de quilómetros percorridos, continuo a gostar de ir tirar fotografias aos locais aonde me levou a imaginação.


29Ago15 - Toledo

Toledo é a capital da Comunidade de Castilla - La Mancha e é conhecida como a cidade imperial.

Toledo, um bom ponto de partida…

Ainda que seja grande o espectáculo em torno das imagens do D.Quixote  e S.Pança no impressionante contraste arquitetónico das ruas e monumentos de Toledo, do alto das suas muralhas, não se avistam os famosos moinhos.O traçado do casco antigo é um autêntico labirinto, feitos em bicicleta, são caminhos que nunca esquecerei.


O calor assentou sobre a cidade como uma manta.Tudo leva a crer que os próximos dias de aventura sejam abafados mas ao mesmo tempo luminosos.
Por agora, no Paseo del Miradero, juntamente com dezenas de turistas assisto ao jogo de luzes que o por-do-sol espraia sobre tons bege, tons castanhos, a cor terra que dissimula os edifícios construídos pelo homem com a restante natureza envolvente.
Por agora, alheio aos turistas, olho o rio Tejo e sorrio. Sei onde desagua, tenho o privilégio de morar perto, conheço o seu cheiro, é-me familiar.





30Ago15 – Consuegra



Uma linha de moinhos, mais de dez, e cada um com o seu nome, ladeia o castelo de Consuegra. No topo desta colina os horizontes e o vento são generosos com quem aqui chega. Nem todos se sentem viajantes a cruzar o território de La Mancha, esse bónus, esse ponto extra, obtido pelo esforço humano em querer chegar mais alto, fica ao critério de cada um.





Observo a terra seca sem água. As parcelas de terreno bem definidas denotam o cuidado que os habitantes locais têm para cultivar o melhor açafrão do mundo.





31Ago15 – Daimiel – En un lugar de La Mancha



Hoje comecei a pedalada 2 horas mais tarde que o habitual, o dia ficou mais curto e a iminência de trovoadas e chuvas fortes ditou que hoje colocasse a tenda num qualquer lugar de La Mancha entre Campo Criptana e El Toboso
Os caminhos são rolantes, têm alguma pedra mas ensopam à mínima carga de água. É difícil habituar-me à horizontalidade da paisagem manchega.



De tempos a tempos, ainda longe, vêem-se “gigantes”. Os moinhos são sem dúvida os ícones desta aventura, as suas silhuetas não deixam ninguém indiferente.

 

Ao lado deles perscruto o horizonte, a terra parece uma manta de retalhos, penso então como o nome La Mancha assenta tão bem nesta região.

Desço vertiginosamente pelo dorso da colina de Alcázar de San Juan, este é um dos momentos que dão crédito a estas viagens e me ajudam a apagar as palavras que ecoam no meu cérebro isto é monótono, é sempre igual. Tudo isto acontece porque por vezes abro o alçapão da memória, lá dentro, experiências únicas e irrepetíveis saltitam inquietas como bolas de ping-pong. Regresso ao presente, ao tempo onde devo estar, se aqui cheguei e ainda pedalo com gosto, então amanhã já sei o que vou pedir como desejo de aniversário.

 





01Set15 En un lugar de La Mancha- El Toboso-Mota del Cuervo-Belmonte-VillaRobledo- En un lugar de La Mancha (cujas coordenadas não quero revelar)- 103kms
 
Esta noite dormi sob “telhado de poliéster” e às 3 horas da manhã o barulho era ensurdecedor. Não pedi chuva, não pedi uma tromba de água que me obrigou a revolver a terra em redor da tenda. O sulco, passou a fosso.
Abro os olhos (novamente, mas mais tarde) e estou um ano mais velho. A luz da manhã mostra o miradouro maravilhoso onde preguei estacas e repousei a bicicleta cansada. À minha frente a planície manchega, o meu desejo está a realizar-se.
Chego cedo a El Toboso, vila natal de Dulcineia, a apaixonada do herói Cervantino. A praça está solitária, as portas estão fechadas, as janelas estão fechadas. São  os monumentos e as ruas (com nomes de personagens) que revelam parte da imortal novela de Cervantes.



Em todos os pueblos cumpro o ritual de encher as garrafas de água. O sol ainda não vai alto mas já se percebe que vai ser um dia com muita transpiração.
Cansado de tanto ziguezague pela terra arada e de vinhedo e tenho uma miragem. Sigo em direção ao castelo de Belmonte quando, à minha direita,7 moinhos lançam o seu magnetismo ao meu atrelado (o quadro de titânio nem se mexia). Confirmei no gps a existência da localidade de Mota del Cuervo e resolvi desviar até lá.



Parar junto das muralhas do castelo de Belmonte (um dos mais bem conservados castelos medievais da Europa) foi a melhor forma de ter sombra antes de continuar para Villarobledo. A matriz dos caminhos continua muito igual, felizmente hoje tenho a companhia do Pedro Capelinha que tem hora marcada de chegada às18h na estação de comboios.

O preço do quarto de hotel nesta grande cidade era aceitável. O Pedro chega e diz-me que traz o nosso jantar de Portugal, respondo-lhe que ainda tenho a tenda desmanchada em cima do atrelado e que, acrescentando uma garrafa de vinho, queijo manchego e um pedaço de terra algures, teremos mais uma noite memorável passada num qualquer lugar de La Mancha.
Rolámos muito, as horas de luz escasseiam e nada mais há para além de vinhas, casas isoladas e a linha do comboio. O “chamamento” surgiu de uma pequena construção de tijolo com um apetecível alpendre. Para nós seria turismo rural, para o proprietário, podia ser chato. O terreno num raio de 20 metros era plano, não muito longe, a casa da bomba passou a ser a casa da serventia onde pregámos estacas. Relâmpagos incendiavam o céu e a noite tornava-se ventosa. Acondicionámos os nossos tesouros e preparámo-nos para o pior. Sei que o Pedro não pregou olho, estava fascinado com a magnitude que os pequenos sons têm quando o silêncio reina na planura. O vento amainou, não choveu.


02Set15 En un lugar de La Mancha- Tomeloso- Argamasila Alba-Lagunas Ruidera 75 kms



Já pedalamos há várias horas e percebemos que aqui vive-se como outrora: de oliveiras, agricultura e vinhas a perder de vista para lá de Tomelloso. Estamos a seguir o som da água que corre livremente por um enorme canal de irrigação que nos conduz de frente ao primeiro impacto com a forte presença da cor azul num tom diferente do habitual. Sentimos o bafo da frescura e quase irrealidade da outrora La Mancha plana e seca.
Já dentro do Parque Nacional da Ruidera, o ruído da água das Cataratas do Hundimiento e o mergulho são o nosso ponto alto da viagem.





03Set15 Lagunas Ruidera- La Solana-Manzanares-Almagro 100 kms

Têm sido muitos quilómetros seguidos sempre com os mesmos tons e cenários a repetirem-se, estando nós numa das paisagens naturais mais surpreendentes de Espanha (informação turística), seria um sacrilégio não aproveitarmos para visitar este parque natural formado por um conjunto de 15 lagoas e onde na sua parte mais alta tem lugar o nascimento do rio Guadiana.
A pedalada começa, como sempre, pouco depois do nascer do sol. Para contornar algumas cascatas e outras formações geológicas ao longo das lagoas, torna-se necessário transpor (com cuidado), pequenas pontes de madeira quase sempre envoltas em muita vegetação aquática. Circundamos parte do PN e logo depois seguimos como planeado na direção do parque de campismo de Almargo.
Voltaram os grandes espaços a céu aberto sem as vinhas de cepa curta no horizonte. Estamos finalmente naquela que é uma das localidades mais visitadas de Castilla La Mancha. A desmesura de quilometragem de um percurso longo e esgotante no dia de ontem comprometeu a visita à cidade. 




04Set15 Almagro (camping)-La Solana-Malagon-Tablas de Daimiel - Daimiel


Estamos no último dia quixotesco a pedalar e queremos restaurar o tempo perdido. Temos uma segunda oportunidade para observar de perto a tão peculiar Plaza Mayor situada no coração de Almagro. 
  
Poucas horas depois, paramos às portas de Ciudad Real. Desta vez não bebemos café solúvel fervido no nosso fogão a gás em um lugar de La Mancha. Misturámo-nos com os outros transeuntes que faziam um intervalo do escritório. Voltámos à rotina…
O track contornava a cidade, como trazia na mente a espectativa de ver mais uma bela cidade espanhola, resolvemos virar o guiador da nossa bicicleta para o seu centro. Tive uma pequena desilusão, esperava mais. Pedalámos, pedalámos para sairmos pela porta de Toledo.
Sobre a estrada que nos leva a La Solana, à vista, os montes de Toledo. Neste tipo de viagem, respeitamos mais a hora a vontade de comer que propriamente a hora do dia. Não sei que horas são mas sei que estamos em Malagon, e pela primeira vez nestes dias, descobrimos um jardim com bancos, água e sombra para podermos almoçar.


“Parecem bandos de pardais à solta, os putos, os putos.” Um atrás de outro, como um carreiro de formigas,começam a chegar. Espantam-se com as bicicletas carregadas, impressionam-se com a rigidez dos nossos músculos e tocam-nos nos gémeos como que a provar que são verdadeiros e feitos da mesma carne que a deles.
Em português digo ao Pedro, impossível elaborar aqui uma ementa à masterchef , temos de ir embora.
Pego no saco das madalenas. Os espanhóis devem ter um fetiche por este doce (julgava que eram os franceses), porque cada saco traz quase sempre um número infinito de madalenas. Há 2 dias que são o meu mimo com o chá e café e ainda há suficientes para aquela mole de liliputianos.
Partilhámos devagar mas partimos depressa.
Vislumbramos agora o Parque Natural de Tablas de Daimiel e percorremos o troço coincidente com o Caminho Natural do Guadiana. O silêncio instala-se no panorama e entranha-se no nosso espírito.Daqui a poucos quilómetros regressamos ao ponto de partida para começarmos a  pensar como será a próxima a(ventura).





   Epílogo

Esta rota não é difícil, não é feia, não tem muitos quilómetros nem tampouco é longe.
Nunca uma visão tão pessimista e com tanta negação me convenceu tão rapidamente a partir e a deixar mulher e filho em Portugal.
Optar pela viagem sozinho não é fácil, no entanto, depois de permanecer uma semana num eco resort situado na costa alentejana, percebi que havia mais conforto e descanso do que podia gastar.
O que me faltou foi novidade, o desafio, algo que me abane, me tire do transe e me abra os olhos. Aspiro a algo mais do que segurança e conforto. Quero alcançar pedaços de território que, uma vez pisados, nunca mais me deixarão ser a mesma pessoa.

Quem nos ama, permite essa busca…


 
“Bem te podes aclamar ditosa sobre quantas hoje existem na terra, ó das belas, belíssima Dulcineia del Toboso…


…por quem tenho feito, faço e hei-de fazer as mais famosas façanhas de cavalaria que jamais  se viram e vêem, ou hão-de ver neste mundo.

 D.Quixote